sábado, 28 de maio de 2011

Os Labirintos Desapercebidos, por Edival Lourenço


Os labirintos desapercebidos
Edival Lourenço*

Sonho não é realidade. Mas também não é ficção. Seria uma realidade nascida de uma ficção? Ou uma ficção nascida de uma realidade? Acho que não é uma coisa nem outra. Embora se alimente da ficção e da realidade, os sonhos construídos pela argamassa de nossos neurônios galopantes e de rédeas soltas, sonhos e apenas sonhos é que são.
Com a diluição de um possível conceito sobre sonho e realidade é que inicio esta breve impressão de leitura deste romance saboroso e intrigante Lygia entre os dragões de Itamar Pires Ribeiro.  Ocorre que o que nos assalta desde logo é a dúvida se a trama do livro foi tecida pelos fios de fatos reais ou de coisas inventadas. Porque os fatos que dão corpo à obra nos parecem até certo ponto familiares, mas ao mesmo tempo estranhos. Como objetos expostos na penumbra de uma vela de cera, atrás de um biombo de treliças ou mesmo de uma cortina de fino voil: a gente os reconhece no lusco-fusco, com alguma dúvida, portanto.
Assim é que é este lapidar romance. Quem vive em Goiânia há pelo menos três ou quatro décadas há de saber logo de cara que os cenários apresentados são genuinamente goianienses, que os fatos, que neles se animam, possivelmente também o são. Coisas reais e genuínas como os cenários e os fatos narrados pelo icônico Joyce na antológica coletânea de contos Dublinenses. 
No entanto, os fatos reais aqui expostos, se não estou enganado, são meros pretextos para a ficção. E, no contraponto desta ideia, a ficção aventada não passa de  pretexto para dar relevo, para fixar mais fortemente a realidade. A realidade esposada salta do romance a nossos olhos como um bicho reinventado: como um gato que, apesar de gato, tivesse dentes de pessonha; ou feito uma a serpente que exibisse hálito de fogo como os dragões. Dragões que, aliás, são uma metáfora fortíssima, a desafiar o leitor, como o lado sombrio do ser, de capa a capa do livro.
Itamar Pires Ribeiro é um escritor tinhoso, ladino e diligente que vem se superando a cada obra com que nos brinda. É um autor que estuda à exaustão as teorias do fazer literário, aprende os entalhes, os amarrilhos, as manhas, adquire e domina as ferramentas disponíveis. Mas, premido pela sede da própria criatividade, acaba, pelo menos em parte, por inventar outras ferramentas e outros traços de elementos, para a composição de seu trabalho. E penso até que teorias podem sem acrescidas ou mesmo inventadas a partir da engenhosidade de seu texto. O tempo, se não calar a voz diante da magia tosca do espetáculo hodierno, dirá.
Lygia entre os dragões é um romance bom de ler, porque à primeira vista nos parece algo simples. Pode ser lido e entendido conforme o nível cultural e a teia neural do leitor. Uma história dramática e empolgante num ambiente um pouco lúgubre, que às vezes lembra O morro dos ventos uivantes de Emily Brontë. As coisas e o dizer sobre as coisas formam um todo continum, num ir e vir, meio onda, meio círculo, no suceder das gerações. A ruptura, no entanto, é um mito e uma tola pretensão. A agregação por sedimento é a praxe. A título de exemplo, René Descartes proclamou penso, logo existo colando de Santo Agostinho, que já havia dito erro, logo existo que colou dos romanos errare humanum est, que colaram sei lá de quem.
Pelo olhar atento do autor nós vamos perceber que apesar de nossa arquitetura Art Déco e de nosso ambiente solar, nossos prédios e repartições guardam muito do espírito gótico e sombrio de tempos guardados na memória, do nevoeiro que envolve a Casa de Usher, antes da queda. Veja este arrematado exemplo, dentre tantos: E assim a noite do sábado transcorreu e fluiu para dentro do dia do domingo, transformando-se da tempestade inicial, enfática, cerzida nos fogos de prata dos relâmpagos, em chuva  muda, contínua, interminável, chuva que apagou o sol forte da manhã, fazendo com que  o dia nascesse  sem qualquer pompa de rubros e dourados, impondo que o amanhecer apenas  escoasse da noite, como uma espécie de humor vítreo, uma cinza de estrelas extintas, de relâmpagos apagados. Aliás, não é sem razão que as referências a Edgar Allan Poe nos espreitam durante toda a leitura. Afinal, os dragões nos assombram pela primeira vez( ou pelo menos apresentou seus maus augúrios) como simples ilustrações de numa folha de papel vergê em que Hanna transcreve o sinistro poema O Corvo de Allan Poe.
Pelo olhar atento e assombrado do autor, percebemos que nossos prédios góticos e repartições lúgubres estão inseridos em labirintos, que não fossem por sua acuidade mental, nos passariam desapercebidos. O que são, senão labirintos surreais, aquelas superquadras do Setor Sul?  Goiânia, sob o olhar de Itamar Pires Ribeiro ganha status de uma cidade mítica. O próprio texto é labiríntico, como as Ruínas Circulares de Jorge Luís Borges ou uma superquadra do Setor Sul.
E para construir o enredo da história digna da magia da cidade, o autor busca nela mesmo a sua inspiração. Pega os retalhos dos sonhos e das frustrações da geração Beat. Não a geração Beat de Woodstock, da Rota 66, nem das barricadas dos jovens libertários de Paris de 1968. Mas da geração Beat do Cerrado que sonhou com uma revolução social autóctone e para isso mobilizou sonhos e pegou em armas, sejam reais, sejam metafóricas. E sofreu a rebordosa acachapante de um sonho frustrado. Como castigo simbólico de toda uma geração, vai viver a sua história encolhido, acuado. Seja como um soturno burocrata restaurador de livros que ninguém vai ler, seja como suicida aparentemente sem causas, mas sem fugir um milímetro que seja da lucidez do próprio destino. Como fica explícito na dicção do próprio narrador: numa fidelidade louca de cão deitado no túmulo do dono.     
 Lygia entre os dragões é um romance pop, no sentido deleuziano, por recorrer a simbolismos eruditos, da cultura clássica, bem como a elementos da cultura de massa, da sociedade de consumo, como filmes, músicas e até histórias em quadrinho. Há referências explícitas e secretas. Exemplo: o número do telefone de Lygia, de cinco algarismos 2-6354 (formato dos antigos telefones de Goiânia), é o número de série de Blade Runer, personagem trágico do filme homônimo, de Ridley Scott. Trata-se, este romance, de um épico, meio anarquista, que traz para seu bojo o drama intenso da geração pós-pós (quase replicante de si mesma), com o ritmo e a sensibilidade da poesia. Um romance incompleto (no sentido de ser aberto), para quem estiver munido de informações e bastante atento, na medida em que vai descobrindo o espaço perfeito para ser preenchido com as lembranças, os sonhos, os dramas, a opulência e a precariedade que cada leitor carrega em seu farnel existencial. 

* Edival Lourenço é escritor, autor de
A centopeia de neon, O elefante do cego, dentre outros.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Lygia entre os dragões - romance será lançado em junho

O romance "Lygia entre os dragões" será lançado no próximo dia 21 de junho, às 20 horas, na sede da UBE-GO (Rua 21, nº 262 - Centro).
A publicação conta com o apoio e patrocínio da Lei Municipal de Incentivo da Cultura da Secretaria Municipal de Cultura.
O romance, ambientado em Goiânia, tem 320 páginas, fromato 15x23 e conta com foto-ilustrações criadas a partir de fotos de Itamar Pires Ribeiro.
Confira abaixo a capa e uma das ilustrações do livro.