quinta-feira, 16 de junho de 2011

Trecho de abertura do romance "Lygia entre os dragões"


 
“Desde então ela enviava sinais, insinuava sua aproximação, o que, enfim, nos consumiria, mas eu era surdo e cego. Os três cadernos foram um prenúncio, que, como acontece com a maior parte dos prenúncios, só são entendidos depois, muito depois. A morte de Hanna ocupou todo o tempo e o espaço disponível, alongou por uma sensação de meses e anos o que foram dias e semanas, restou provada para mim a estranha afirmação da física de que o tempo depende de seu observador. Para mim ficou claro que o tempo depende da agonia.
De Hanna sobraram as fotos, um atestado de óbito em nome de Hanna Eleanor Rigby de Souza, que nasceu e assim foi registrada e batizada aos 25 dias do mês de abril do ano da graça de 1974, o dia da Revolução dos Cravos, “Grândola vila morena Terra da fraternidade O povo é quem mais ordena Dentro de ti ó cidade”. Filha de um pai doido pelos Beatles e por Chaplin, e uma mãe que um pouco se parecia com ela, em tudo uma versão menor e mais tranquila, durável, persistente, terrível, uma canária filha de uma coruja. O fogo gelado dos olhos castanhos de Hanna, nunca mais. “Dentro de ti ó cidade”, enquanto no Brasil se consumia o esgoto escuro da ditadura “que há de durar para além do ano 2000”, se lascando, se fodendo de verde-e-amarelo. Ela nascia, abria o duplo farol de fogo gelado, o fogo castanho dos olhos, que talvez ainda não queimasse como queimara, tanto, tanto. Nunca mais. Nunca mais a voz grave e, pela manhã, rouca, o riso, e a vontade de voltar para o balé: não. Sonhando com o brilho sobre os palcos, sonhando: não. E nenhuma outra daquelas filmagens bobocas, que consumiam fitas intermináveis de VHS, as quais nem ela tinha paciência para ver. As crises de choro. As agonias. O silêncio espreitando e armado com facas, garras, presas, armadilhas que estalavam em frases curtas e frias, que faziam o exato estrago necessário — não mais. Hanna Eleanor Rigby — ela e todos os solitários, os incuravelmente sós — nunca mais. Never more, dizia o corvo, never more. Pouca gente no enterro, recolhi duas pétalas de rosa, guardei-as no bolsinho da calça — o arroz de um casamento alheio. Adeus. Hanna Eleanor Rigby de Souza, 33 anos, matou-se de medo e silêncio. Um tiro, direto, na cabeça, e que, no entanto, se desviou, ricocheteando e foi se alojar numa posição inoperável, fundo, bem fundo no cérebro, apenas por um capricho sádico da natureza.
O fogo dos olhos castanhos, nunca mais.”

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